A polaridade política (e a propaganda) no cinema brasileiro contemporâneo
A polarização ideológica também interferiu no cinema nacional no século XXI?
Nos últimos quatro, cinco anos, o cinema brasileiro surgiu nas pautas dos noticiários e das redes sociais (refiro-me em ocasiões em que não se falava de um filme ou realizador em específico), ao menos em dois momentos bastante contundentes: o incêndio na Cinemateca Brasileira e a partir de o ex-presidente Jair Bolsonaro questionar a produção recente e anunciar planos em relação a Agência Nacional de Cinema (ANCINE). Se considerarmos a produção da última década, ou década e meia, vamos encontrar bons filmes que o ex-mandatário da nação nunca ouviu falar, mas também um dispêndio muito grande de filmes esteticamente irrelevantes, o que não impediu a vários destes de serem incensados efusivamente por cinéfilos e críticos. Antes de qualquer outra coisa, pode-se dizer que o cinema em todo mundo sempre foi uma arte permanentemente em crise, levantando em toda a sua história discussões e até mesmo não raros conflitos nos questionamentos sobre seu passado, presente e futuro. No Brasil, não costuma ser diferente, e tampouco o poderia no momento turbulento de crise política e cultural em que nos encontramos.
Há um certo tempo, ao reler os fragmentos traduzidos para o português do E Unibus Pluram, o famoso ensaio do escritor norte-americano David Foster Wallace, em que num trecho é explicado que com o surgimento das dezenas de canais de TV a cabo, era mais difícil o espectador assistir comerciais, pois tão mais sedutor nos intervalos de seus programas favoritos o espectador brincar com o controle remoto em busca de opções atrativas em outros canais. A solução encontrada foi a de se fazer comerciais mais bonitos, sofisticados, "mais animados e cheios de suficiente informação visual rapidamente justaposta", para que nossa atenção (ou o déficit dela) se prendesse aos anúncios nem que fosse por mais alguns segundos. E ao mesmo tempo os programas de televisão passaram a se desassemelhar menos aos comerciais, para que não sintamos tanto como uma ininterrupção a passagem de um para a outro. No artigo de 1997 há a citação de um executivo publicitário: “Os comerciais estão ficando mais parecidos com os filmes de entretenimento”. Não é exagero dizer que nessas duas décadas os filmes de entretenimento também ficaram mais parecidos com os comerciais. Era só uma questão de tempo.
Na década de sessenta, numa entrevista para a Cahiers Du Cinèma, o cineasta francês Jean-Luc Godard afirmou que assistir um filme na televisão era acompanhar dezoito espetáculos diferentes ao mesmo tempo. No século XXI, com os Smartphones e Iphones como extensões de nossos braços (e de nossas consciências), a experiência de assistir a um filme é ainda mais influenciada pela invasão de fatores externos, acompanhada sobretudo por elementos de publicidade, mesmo que rápidos, mínimos, porém constantes e cumulativos. A maneira de se fazer filmes inevitavelmente acompanharia esse processo de revolução cognitiva em todos nós. O espectador em geral não consegue assistir um filme com relativo interesse se este não passar por alguma espécie de filtro, de mediação.
Praticamente todo o cinema que se faz hoje em dia, com as louváveis e cada vez mais raras exceções, é publicitário, incluindo o chamado circuito de filmes de arte. Do francês ao sul-americano, e sem escaparem os asiáticos. A necessidade de caça e triagem do que não possui sobrecarregada essa estética publicitária tem sido cada vez mais difícil na produção atual. A maioria dos espectadores já nada se importando com esse estado das coisas. O que leva a muitos de nós a sentir falta até mesmo no cinema de entretenimento de hoje, do bom e velho filme de ação, ou da comédia com o triunfo do humor, não da zoeira, esses gêneros que ficaram enterrados lá nos anos 80, ou vai lá, 90, junto com a infância de cada um. O cinema italiano como o melhor exemplo dessa variedade de gêneros, do western ao filme de terror, até os últimos suspiros da outrora magnifica indústria cinematográfica italiana.
O que liquidou com os cinemas populares pelo mundo foram sobretudo as produções de George Lucas e Steven Spielberg, que passaram o rodo com os bilhões de dólares (e de efeitos), capazes de fazer qualquer outra manifestação de cinema popular no ocidente não sobreviver como um produto para além do precário, quando que nas ocasiões em que bem realizado, nos remetiam à matéria, sendo essencial para uma certa aura materialista do cinema, muito mais que os exagerados CGI. O cinema hollywoodiano na linha de Spielberg & Lucas investe numa forma de mediação, que sequestra, e toma de assalto o nosso olhar e nossas mentes, abandonando uma transparência do cinema clássico e do antigo cinema popular, da mesma forma que grande parte dos seriados norte-americanos influem mais que tudo no comportamento e mentalidade do público insatisfeito existencialmente com o que pode ter por perto, o que inevitavelmente levará a mais e mais consumo para a concretização de algo que as pessoas mal conseguem perceber o que seja. Retornando a um outro comentário de Jean-Luc Godard, numa série de conferências no Canadá em 1978 (que dariam origem ao livro Introdução a uma Verdadeira História do Cinema), o francês afirmou que somente os realizadores de blockbusters e os governos totalitários falam e influem sobre cem milhões de pessoas. E aqui voltamos ao cinema brasileiro (ou a um sonho ou uma ideia deste cinema) na era dos mandatos PT ou de Jair Bolsonaro.
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