Assassinos da Lua das Flores
Os três últimos filmes de Scorsese e as comparações com O Portal do Paraíso
“Para os homens de épocas anteriores, a matéria era como um aspecto de Deus. Nas culturas que se costumam chamar arcaicas, essa perspectiva era imediata e ligada à experiência sensorial, pois o símbolo da matéria era a terra. Esta, em sua realidade perene, representava o princípio passivo de todas as coisas visíveis, ao passo que o céu representava o princípio ativo e gerador. Os dois princípios são como as duas mãos de Deus. Relacionam-se um com o outro como macho e fêmea, pai e mãe, e não podem ser separados um do outro, pois, em tudo o que a terra produz, o céu está presente como poder criativo, ao passo que a terra, por sua vez, dá forma e corpo à lei celeste. Assim, o jeito arcaico de ver as coisas era ‘sensível’ e espiritual ao mesmo tempo, pois a verdade metafísica por trás dele permanece independente dessa imagem simples do mundo. ”
- Titus Burckhardt, Alquimia: Ciência do Cosmos, Ciência da Alma
Muito se falou que seria o Heaven’s Gate do Scorsese, mas pouco encontramos de tentativas de aprofundamento nas comparações. Até porque o fazer seria encarar as limitações desse trabalho recente. Um fracasso comercial histórico e monumental, o de Michael Cimino desde o lançamento em 1980 assombrou realizadores de sua geração, incluindo admiradores confessos do filme como Francis Ford Coppola e o próprio Martin Scorsese. Desde aquela época Coppola pagou de gênio incompreendido e contra o sistema pelos fracassos que dirigiu, faturando em cima de uma pecha que pouco beneficiou ao Cimino em vida embora servisse bem mais a ele do que a Coppola. E com Scorsese a relação parece ainda mais instigante. Diz-se que planejava dirigir Gangues de Nova York no começo dos anos 80, porém o fracasso de Heaven’s Gate impediu que acontecesse, inclusive pelas comparações que poderia advir perante a grandiosidade do trabalho do Cimino, vindo a realizar o seu projeto vinte anos depois. O filme não ajudava muito, e à altura de 2003 a reabilitação crítica de Cimino (que já não mais dirigia) não estava completa, vindo a se concretizar de maneira praticamente póstuma.
Outros vinte anos foram necessários para que Scorsese dirigisse o ainda mais ambicioso Assassinos da Lua das Flores, em um momento que se pode considerar bom na filmografia do cineasta, depois de duas décadas de filmes que giravam em falso. A dobradinha Silêncio (2016) e O Irlandês (2019) praticamente repetia A Última Tentação de Cristo (1988) e Godfellas (2000) – e de modo um pouco superior ou maduro ao menos para quem não é tão fã daqueles filmes do final da década de oitenta. O Irlandês, por exemplo, possui esta coisa rara nos dias de hoje que é a de uma trilha sonora belíssima que tanto pontua o filme quanto prazerosa de escutar muito depois da projeção.
Assassinos da Lua das Flores traz o conflito de civilizações e de religiões em território belicoso que havia em Silêncio com o gangsterismo de homens a princípio comuns de O Irlandês que com o tempo se revelam criminosos de envergadura maior. Scorsese sempre compartilhou que teve a infância marcada pela presença entre padres e gângsteres, do papel da igreja e filmes de máfia bem como de diversos outros gêneros. O cineasta agora octogenário reflete essa dicotomia que identificava quando criança, daí que os três filmes podem ser considerados pessoais, algo que a nostalgia de uma visão romantizada do passado (O Aviador e Hugo) ou as tentativas de dar conta do mundo contemporâneo (Os Infiltrados e Lobo de Wall Street) mais deformavam seu cinema ao invés de se filiar genuinamente à certas obsessões particulares.
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