É bastante conhecida a história de que Samuel Fuller teria saído indignado de uma exibição de Nascido Para Matar (Full Metal Jacket, 1987) dizendo que aquele era mais um filme de recrutamento. O que vai contra uma ideia de que em cada oportunidade Stanley Kubrick concretizava uma obra distinta do que outros realizadores cometiam em cada gênero em específico. É certo afirmar que Fuller teria optado por um modo diferente se fosse ele o realizador. E não é querer tratar como se o veterano cineasta reagisse unicamente por despeito, mas seria válido considerar quais os títulos de recrutamento naquela década de oitenta. E também a posição do próprio Samuel Fuller no período, que vinha do seu último grande filme de guerra, Agonia e Glória, impiedosamente retaliado pelos produtores em 1980 (na sua versão reconstruída lançada nos anos 2000 confirma-se como o melhor no gênero realizado desde o seu lançamento original), e praticamente expulso de Hollywood após o brilhante e pouco compreendido Cão Branco. Assim, Fuller estaria como um Griffith ou Stroheim há anos impedidos de dirigir procurando ressalvas ao assistirem Cidadão Kane, realizado com invejável carta branca e total liberdade de criação por Orson Welles, guardadas as devidas proporções que separam o de Welles com o de Kubrick, com este podendo fazer o que quisesse dentro de um estúdio como a Warner Bros, justamente por ter se isolado da usina hollywoodiana, sem deixar se devorar por ela. Ainda assim, conta-se que posteriormente o filme de Kubrick, Apocalypse Now e outros também tidos por antibélicos foram utilizados em treinamentos na guerra do golfo para estimular os soldados norte-americanos à uma sede de combate, o que confirma que o velho Fuller possuía uma parcela de razão.
E afinal, quais seriam aqueles filmes de recrutamento? Full Metal Jacket, em sua primeira metade, assemelha-se em alguns pontos com o argumento de An Officer and the Gentleman (lançado no Brasil com o novelesco título de A Força do Destino), um repulsivo sucesso militarista de Taylor Hackford e da temporada do Oscar de 1982, no começo da era Reagan, e muito mais reacionário, por exemplo, do que o primeiro Rambo, também lançado naquele ano. E no qual o galã Richard Gere entra num curso da Marinha norte-americana e ele e seus colegas comem o pão que o diabo amassou sob as ordens de um sargento-instrutor sádico. Por odioso e vilanesco que este pareça, o protagonista passa por uma espécie de autodescoberta que resulta em seu amadurecimento e transformação masculina, e fica com a mocinha enquanto um colega sensível se suicida, incapaz de se adaptar à certas regras do mundo. Após essa “jornada do herói”, Gere ao final assiste com admiração a chegada de uma nova turma para aulas com o sargento, visto agora de uma maneira positiva (Louis Gosset Jr. ganhou um Oscar pelo papel). E que certamente inspirou quatro anos depois, no segundo mandato Reagan, Top Gun – Ases Indomáveis: troca-se a marinha pela aeronáutica, acrescentam-se cenas de aviação em ritmo de videoclipe, e a jornada rumo ao amadurecimento e sua definitiva transformação em macho alfa é quase a mesma (ambos possuem canções-temas românticas bastante pegajosas). Não por acaso, Top Gun teve uma continuação no ano passado, em tempos de ascensão e queda (e fantasma?) do trumpismo e da extrema-direita pelo mundo.
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